sexta-feira, 13 de julho de 2012

TRÊS NUGAS LINGUÍSTICAS

HÉLIO MELO

Há migalhices vernaculares que, às vezes, nos preocupam. Coisas de nonada que parecem sem importância. Mas, para quem deseja escrever com correção, nada é despiciente em matéria de português. Nas peças de ourivesaria, as filigranas têm papel de relevância. Assim, as minúcias linguísticas ocupam também posição de relevo no estudo da Língua. Não as podemos desprezar.
O médico Paulo Gurgel Carlos da Silva, ao presentar-me com o livro - "A Nova Literatura Brasileira", 1984, publicado pela Gráfica Portinho Cavalcanti Ltda. (Rio de Janeiro), que traz, nas páginas 100-101, seu trabalho "Inventando Coisas", enviou-me três questões de português sobre as quais pede meu modesto pronunciamento. Ei-las: "1) Que que estás fazendo?" - Na frase acima, temos: "que" interrogativo - "é" (verbo ser, oculto) - "que" relativo, originando a duplicação de "que" tão a gosto da linguagem popular. Que (que) o senhor acha? 2) "O que é um materialista?" Júlio Ribeiro, em sua célebre polêmica com o padre Sena Freitas, construtor da fase supra, acusou este de errar vergonhosamente em sintaxe. Para Júlio Ribeiro (também para Carlos Laet, contemporâneo dele) seria "corruptela vitanda" usar o "o" expletivo, antes de "que" interrogativo. O impecável autor de "A Carne" tinha (ainda a tem?) razão. 3) "... e amarga que nem jiló." A expressão "que nem", significando "como" 'igual a" (V. letra de H. Teixeira, em baião de L. Gonzaga), está bem com o povo mas não com os gramáticos. Por que tal ocorre? Pela atenção dispensada, grato Paulo Gurgel. Vejamos os três casos.
Quanto à frase - "Que que estás fazendo?" é o primeiro 'que" um pronome interrogativo, e o segundo, uma partícula de realce, a exemplo de tantas outras como: Que que há de novo? Que que significa isso? Oxalá que isso aconteça! Chegou a correspondência. Que não venham más notícias (= oxalá). Diga-me quem é que vai transmitir a notícia. Eu é que hei de ir? Ela é que vai sofrer. "Que é que me pode acontecer?" (Machado de Assis, "O Lapso", in "Histórias Sem Data", pág. 27). "Oh! que saudades que eu tenho da aurora da minha vida" (Casimiro de Abreu). As partículas expletivas são palavras sem dúvida desnecessárias ao sentido da frase, todavia lhe dão vigor e sobretudo graça, como vimos no último exemplo de autoria de Casimiro de Abreu. Pode-se também considerar o segundo "que" um pronome relativo, como o fez o meu consulente. A frase seria assim compreendida: "Que coisa é a qual estás fazendo?"
Na frase - "O que é um materialista?", creio que é dispensável o emprego do artigo "o". No "Dicionário de Questões Vernáculas" (Editora Caminho Suave Limitada, pág. 213), faz o o professor Napoleão Mendes de Almeida o seguinte registro: "O que - Embora comum no linguajar do povo e, mais ainda, encontrada em escritores, a forma "o que" como pronome interrogativo a iniciar oração interrogativa não é sintaticamente legítima porque o "o" nenhuma função fica exercendo na oração".
Também o espanhol luta com o popular interrogativo "el que". Somente quando posposto ao verbo é que o interrogativo admite o "o", necessário exclusivamente para efeito eufônico: "Fez ele o quê?" - "Mandou o quê?"
Iniciando oração interrogativa, o "que" mais castiçamente deverá ser desacompanhado do "o", porque neste caso é sintática e eufonicamente inútil: "Que quer você?" - "Que há?" - "Quê?".
Na verdade, deve-se omitir o artigo definido, antes do pronome conjuntivo "que", quando empregado interrogativamente. Nem por isso deixaram de empregá-lo autores clássicos e modernos: "O que faremos?" (Garrett, "D. Branca") - "O que são as revoluções políticas de nosso tempo?" (Herculano, "Opúsculos") - "O que é lá isso?" (Castilho, "Avarento") - "O que tem ele?" (Camilo, "Romance de um rapaz pobre") - "... e o que eram as estrelas? acaso sabiam eles o que eram as estrelas?" (Machado de Assis, "Ex Cathedra", in "Histórias Sem Data", pág. 267).
É comum o emprego de "o que" equivalente a "isto": "O resultado não foi bom, o que me surpreendeu."
Finalmente, a última indagação: "... e amarga que nem jiló". A locução conjuntiva "que nem" teve uso no português antigo, no sentido de "como". Hoje, os gramáticos a consideram forma arcaica. As gramáticas trazem o conhecido exemplo de Rebelo da Silva, com a significação de "como": "O erudito ficou vermelho que nem uma romã". Tenho-a ouvido frequentemente nos sertões cearenses, na linguagem inculta dos nossos matutos.

Publicado no Jornal "O Povo" em ??/08/1985

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