sexta-feira, 15 de junho de 2012

APRECIAÇÃO LITERÁRIA SOBRE "MEMÓRIAS DE BOTEQUIM"

por Paulo Gurgel Carlos da Silva
Airton Monte é um nome em ascensão na literatura cearense. Membro do Grupo Siriará de Literatura, vem tendo uma militância admirável no conto e na poesia. Assim é que já participou de várias antologias, nestes dois gêneros literários ("Ver-de-Versos", uma delas), publicou "O Grande Pânico" (livro de contos com circulação nacional), e, mais recentemente, integra o conselho editorial do Arsenal de Literatura, que acondiciona literatura e artes visuais.
Com mais uma publicação, reaparece Airton: "Memórias de Botequim", um livro de poemas editado pela Imprensa Oficial do Ceará, sob os auspícios da Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará. Uma obra que encerra (ou melhor: descerra) cinquenta poemas de talhes diversos.
"Memórias de Botequim", o título descontraído da obra funciona como uma espécie de cortina de fumaça. Encobre seriedades: DO AUTOR, na eterna busca de reconhecer a si próprio ("vago ser"), no anseio de traduzir para o plano verbal os reclamos de seus "fragmentos corporais" (olhos, mãos, coração etc.); entretanto, longe de ficar numa contemplação estática, ele abre os olhos, prepara os punhos, acelera o coração e energiza-se para bradar, gritar e, enfim, lutar. DO-SEU-UNIVERSO-ALÉM-DA-PELE, quando diz: "Eu, poeta, muito tenho a ver com tudo que me cerca" e, confessando que "ama os malditos", personifica o bêbado, o mendigo, o louco, o suicida, o sonâmbulo, o epiléptico. Interessa-lhe ir além do prazer estético da poesia: chegar à denúncia social. Seu discurso poético é nítido, sem palavras maquiadas e, por vezes, a exorcizar o poeta romântico que um dia foi. Sem aura romântica, sua preocupação maior é agora forjar uma poesia comprometida com a época atual, dita cruel.
O autor tem turbulências, questionamentos. Sobre a poesia ("trabalhinho sujo"): o que fez ela até hoje pela "multidão de deserdados"? Tem medo, angústias, tédios, o renitente conflituar com a vida, esse "ato cruel e necessário". Mas, se a vida é-lhe cruel porque o conduz ao cansaço, à estagnação, à subterraneidade, por outro lado, compromete-se com ela. Com ser Orfeu, reencarnado.
Acima de tudo, Airton tem afetos: Fernando Pessoa, Hemingway, Vinicius, Marilyn, Noel Rosa, James Dean, Garrincha (que o ensinou a sonhar) e, principalmente, sua esposa e filhos. Estes últimos inspiram-no a poemas enternecidos.
Finalmente, deixo que seus versos falem (por mim) na pequena, mas expressiva, seleta que se segue:
"Que poesia é essa que se esvai no copo / presa à mão crispada deste homem meio bêbado?"
"A hora arrasta-se devagar como um enterro / presa à imobilidade de um relógio quebrado."
"Vou catando saudades como quem cata piolhos /na cabeleira do tempo."
"Se existe o medo é porque existem / pessoas dispostas a sentir medo."
"Ninguém deve se atrever a seguir a rota do poema / porque ele está vazando medo e ódio e tédio / neste banquete imaginário em que estou só / discursando para as toalhas e os pratos."
"Me derramo no seu ventre num parto avesso."
"Descobri, por exemplo / que ter 23 anos é como ir morrendo aos poucos / que a manhã afia suas navalhas / no apito renitente das fábricas."
"Um homem esvazia-se como um balão furado / pelos buracos abertos na cabeça."
"Todos os antepassados / estão gritando das fotografias."
"Sei que estou sozinho / feito um pingo de tinta solto num arco-íris."
"Eternamente preso à dúvida atroz / entre o ir e o não-ir / entre explodir o mundo detestado / ou beber como um danado / a mágoa de um tempo inutilmente rápido."
"Súbito um grito: uma nuvem gritou."
"Poder te possuir despudoradamente / como um arado possui a mulher terra."

Publicado em "A Ferragista" de junho de 1981

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