sexta-feira, 30 de abril de 2010

MINIMALISTA

Sr. Editor,
De tempos em tempos ressurge a discussão sobre o famoso dedo mínimo de Lula. Aquele que o líder petista não mais possui, claro, já que o outro, em sua dolce vita na mão normal, não é sequer lembrado. A não ser pelo dono, nos momentos em que ele precisa do mindinho sobrevivente para se aliviar de algum prurido no canal auditivo.
Mais recentemente, a discussão tomou corpo quando o seu principal concorrente na corrida presidencial fez o seguinte: adotou, como símbolo de campanha,uma mão espalmada - com todos os dedos à mostra! Como se fosse uma provocação à Lula que, com desvantagem nesse campo, não reúne condições para responder no mesmo estilo. Sob o risco de estar incidindo em meia-verdade.
Outra preocupação é livrar-se dos comentários maldosos sobre a perda digital. Dos "sem-afetos" que, botando o dedo no suspiro, tentam defini-lo como "um trabalhador burro, por ter se acidentado no trabalho". Ora, então esses atiradores de farpas não ouviram o que alguém disse? Sobre aplicar o mesmo raciocínio no caso de Ayrton Senna, apenas para ver a que esdrúxula conclusão se pode chegar.
Principalmente que Senna, o maior piloto de carros de corridas que o mundo já viu, no circuito de Ímola, perdeu bem mais do que um dedo...
A condição de deficiente físico ao líder "minimalista" só pode carrear muitos votos adicionais. Oriundos dos deficientes físicos existentes no país, mas não da parte dos deficientes mentais. Os votos destes, por uma questão de identificação, já estão tendo outro encaminhamento (pelas barbas de Enéas, não me perguntem para quem!).
Teresópolis à parte, um dedo não é tudo! Com os nove que lhe restam, Lula poderá inclusive inovar quando estiver no poder. Não pagando conta pública que antes não tenha passado na prova-dos-noves. Fazendo, sem se equivocar no número, as novenas para Santa Edwirges etc. Contanto que, estando lá, não nomeie ministros cheios de nove-horas (sob o pretexto de que vão participar da reunião palaciana das nove).
Lula não se propõe tocar harpa (embora o país muito se pareça com uma!). Quer apenas governar o Brasil, um país tão cheio de problemas que qualquer um que se meta a resolvê-los terminará cheio de dedos. E, com menos um, ele já parte com alguma vantagem.

Datas da publicação: 17/06/94 no JORNAL DO LEITOR e 29/06/94 no DN - CARTAS  

sexta-feira, 23 de abril de 2010

À SOMBRA DOS SAPATOS IMORTAIS

A propósito de uma pergunta sobre o que fazer com os sapatos de Imelda Marcos, tenho alguma sugestões.
Bem, antes de tudo, fico na dúvida acerca da quantidade exata dos pares de sapatos que aquela senhora na atualidade possui. Estima-se que sejam mais de cinco mil pares. Agora, dizer exatamente de quantos se compõe o acervo acaba não passando tudo de um chute (ora, bolas). E dos mais desajeitados porque, ao que parece, não há chuteiras no lote da viúva. Só sapatos finos, adquiridos com parte dos cinco bilhões de dólares com que se calçou o marido, o ditador Ferdinand, ao tempo em que esteve no poder.
Como era a fórmula: enquanto Dona Imelda fazia da vida sapato, Dom Ferdinand, mais abrangente em sua atuação, ia fazendo gato e sapato. Com o povo e o erário das Filipinas.
Mas, as sugestões. A primeira é jogar tudo no vulcão Pinatubo para exorcizar o mal que a ditadura Marcos causou ao povo filipino. Entretanto, resisto a essa ideia: que culpa tem o vulcão? Além de que o Pinatubo, cujo temperamento é reconhecidamente explosivo, não ia engolir a coisa quieto. Na primeira oportunidade, o vulcão devolveria a carga de sapatos ao meio-ambiente. Disso resultando que o arquipélago ficaria qual um imenso panetone - com os sapatos de Imelda fazendo as vezes de frutas cristalizadas!
A sugestão de distribuí-los com a população carente é demagógica. Derrapa na "pododiversidade" e lá poucas mulheres calçam o número de Dona Imelda. Uma dublê de pés dela e meia dúzia de "sociolatas", não mais que isso, seriam as pessoas contempladas pela medida.
Por isso, a ideia mais plausível é criar o Museu do Sapato. Mas sem essa de contar com os sapatos da defunta! Não precisa morrer a viúva Marcos para que a República das Filipinas tome tombe todos os seus sapatos. Aliás, todos... menos um par de pantufas que lhe seria deixado para fazer sapateado no xadrez. Encarregar-se-ia o Estado de os desempoeirar, lustrar e desodorizar... E de botar meia-sola quando bastante andado estivesse o exemplar. Após o que, alertando os curiosos para que não fossem além dos sapatos, seriam estes colocados em exposição no museu.
Com esta destinação proposta para os sapatos, creio haver cortado o nó górdio de seus cadarços.

Data da publicação no Jornal do Leitor: 22/05/94

sexta-feira, 16 de abril de 2010

CARTA AO JÔ - 3

Caro Jô:

Eu tenho notado que os textos lidos por você, nos últimos tempos, são apenas os que aí aportam através de fax. E não através de cartas, como costumava ser. É possível que estas até estejam a ser rasgadas ou incineradas para que não cheguem à sua mesa.
Desculpe o trocadilho mas, em seu programa, epístola agora só tem vez com pistolão. É mágoa com algum carteiro? Justamente agora que temos um CEP novo. É pinimba com algum filatelista? Ou é aquela impressão de que o fac-símile, vulgo fax, aprimora a qualidade do que foi escrito?
Ora, Jô, a carta não existe para humilhar ninguém. Apresenta um passado glorioso que remonta aos mensageiros da Grécia antiga. Conheceu dias de esplendor nas mãos de Madame de Sevigné. E muitas delas, como as que foram trocadas entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, alçaram à condição de livros.
Uma carta, entre outras qualidades, pode vir impregnada do perfume da mulher amada. E o fac-símile nem de perto acena com essa possibilidade.
Ah, quanta verdade tristonha ou mentira risonha uma carta nos traz! A própria Bíblia não seria a mesma sem elas. Já pensou se Paulo tivesse apenas passado um fax aos coríntios? Além disso, foi escrevendo uma carta-testamento que Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na História.
Não é o fato de um texto ser veiculado através de fax que o torna digno de ser lido. Se algo merece ser lido, ilustrado por seus pertinentes comentários, é porque deve ter conteúdo. E o que ora escrevo tem de sobra.
Pois é, Jô, leia - em público - esta carta. Quanto ao conteúdo, fica para a próxima vez.

Cordialmente,
Paulo Gurgel

sexta-feira, 9 de abril de 2010

TA...MANCADAS

Admiro sem reservas o povo lusitano. Os portugueses que, entre outras coisas, inventaram o submarino de cortiça (que não afunda nunca!), a versão mais avançada do computador (cuja memória foi substituída por uma vaga lembrança) e o limpador de para-brisa (projetado para funcionar no interior do carro).
No país irmão, ao que se sabe, o consumidor é sempre respeitado. De suas fábricas já saem todos os fósforos testados. As xícaras, para o conforto de destros e canhotos, invariavelmente têm duas aselhas. E as perucas são bastante óbvias para que todos saibam quem são os calvos.
Lá tudo funciona às claras. Inclusive a polícia secreta (cujos integrantes usam vistosos crachás). E, de modo mais competente que nós, eles se defendem da inflação. Na base do escudo.
Enquanto isso, que fazemos nós? Invadimos o "jardim da Europa à beira do mar plantado" com os nossos filhos de Tiradentes. Com os nossos enlatados da televisão. Sabendo que estes, do primeiro ao último capítulo, perpetram os maiores atentados a nosso idioma comum. E, para tripudiar, ainda mandamos o Claudio Humberto ser adido cultural em Lisboa.
É hora de a gente parar com o feio costume de contar anedota de português. Principalmente se houver um patrício na roda, porque aí a piada terá de ser contada outra vez. Por essa e outras é que, mesmo sem ter procuração para defender português, eu sempre reajo quando uma dessas infames piadas está para ser contada.
E reajo à portuguesa, naturalmente. Assentando o meu pé de ouvido na mão do infeliz piadista.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

CARTA AO JÔ - 2

Prezado Jô:
Permita-me tomar um pouco do seu tempo para discorrer sobre um vizinho. Ele é o paradigma de um chato. Avalie você que não se pode, nem por cordialidade, cumprimentá-lo com um "oi, tudo bem?", pois sabe o que acontece? Ele não entende isso como uma saudação, faz parar o incauto e daí para frente... tome conversa aborrecida! Durante a qual, tintim por tintim, ele se põe a descrever os últimos fatos de que teve conhecimento, sobremodo os desagradáveis. Quando podia ter respondido com um "tudo bem" e seguido caminho.
Ele adora frases-feitas, lugares-comuns, é porco-chauvinista e tem mau hálito. Não consegue conversar sem, a todo instante, cutucar o interlocutor como se estivesse a lhe oferecer um pato. Enquanto repete, incessantemente, o bordão "tá me entendendo?". Pois saiba você que, numa dessas vezes, eu tive de reagir. "Ora, eu entendo Kierkegaard, o governo paralelo do Lula e a Lei do Inquilinato, por que não hei de entendê-lo?" Mas, nem assim, Jô, larga ele o detestável estilo, já que "mancômetro" é algo que não tem. Nem cortador de grama, o qual, se ele me toma emprestado, devolve depois quebrado.
O certo é que não vou aturá-lo mais nas festas que faço em minha chácara. E, para barrá-lo na pretensão de entrar sem convite, na próxima vou pôr leão-de-chácara na entrada. Sabe como é, Jô, o sujeito a fazer da minha festa um grande rega-bofe, a falar bem do governo, a contar piada cabeluda na presença de minha irmã que pensa em ser freira... Aí, quando alguém começa a contar outra, que talvez melhore o nível, ele vai, interrompe com um "ah, essa é velha!". E, assim, prossegue até a festa terminar... com ele promovido de chato a bêbado chato!
Diz-se que o universo se acha em expansão, o que pode ser para mim um princípio de esperança. O de que ele fique um pouco mais afastado do microcosmo que habito. Mas... como isso pode levar milhões de anos, o mais prático mesmo é eu me mudar de bairro, cidade ou país (na ordem inversa de preferência). E, se possível, o quanto antes, Jô! Pois o vizinho, para reciclar a sua já imensa chatice, acaba de aderir à cientologia.

Publicado em 20/11/91 no Diário do Nordeste