quinta-feira, 26 de agosto de 2010

FORA DO AR

Depois do jantar Possidônio adorava reunir-se com os amigos para um carteado. Todas as noites, isso, para o desgosto da mulher que queria ter o marido a seu alcance. A parolar um com outro, nas espreguiçadeiras postas na calçada da casa, um longo papo apenas interrompido para cumprimentar os passantes. Sim, era assim que a mulher gostaria de que fosse... Mas, diabos, havia o maldito carteado que arrastava o marido para longe... Não tão longe, porém, uma vez que a cidade, pequena como era, não permitia um grande distanciamento entre as pessoas.
Tanto que Possidônio não encontrava sossego nos carteados com os amigos. Logo e muita vez, chegava alguém, a mando da mulher, para lhe interromper o jogo, com o recado de que fosse ligeiro em casa. Os motivos eram forjados, claro, pela mulher que ansiava pelo retorno do marido. Só que este, com o passar do tempo, deixara de levar a sério os repetidos chamamentos. Podia a casa pegar fogo - de verdade - que ele não arredava o pé do jogo. Embora se aborrecesse, e muito, com as insistências da cara-metade.
O diacho. Coisa uma era o entretenimento com as cartas, o papo descontraído com os amigos, as bicadas na cachaça que alguém da turma trouxera... E coisa outra era ficar na calçada da residência, entediando-se com a mulher. Alô, seu Souza, como vai? vou bem, recomendações para a patroa, tal e tal... A cumprimentar os conhecidos, que eram tantos quanto o número de almas da cidade. Por sorte, não passavam todos na mesma noite, se bem que havia um que não falhava. Mas esse vinha de longe, era o vento do Aracati e, graças a Deus, não precisava ser saudado.
Mal o vento passava, então todos recolhiam as cadeiras e iam sonolentos para suas camas, assim era a rotina da pequena cidade. Pois bem, dessa rotina Possidônio se livrava... caindo noutra, a qual pelo menos era de seu agrado.
Um dia, a cidade tomou conhecimento de uma grande novidade. No morrote dos Guimarães, onde Possidônio costumava passarinhar quando garoto, tinham acabado de instalar uma antena repetidora de televisão. De modo que a cidade, daí em diante, ficava integrada à aldeia global, o que era a prova do progresso chegando. E quem podia logo se apressou a comprar o seu aparelho de televisão. Possidônio inclusive, mas por um motivo bem particular, digamos assim. Por entender que o aparelho, assim que fosse entronizado em sua residência, operaria uma transformação em sua mulher. Fazendo com que ela não mais o incomodasse no carteado.
Não deu outra. Enquanto Possidônio mexia com as cartas, as novelas das sete, das oito, das nove... se encarregavam de manter a mulher paralisada na sala do lar. E Possidônio já nem se lembrava do tempo desagradável em que não podia cartear em paz. Por isso, foi com grande surpresa que ele viu o molecote dos recados se aproximar do local em que jogava. Não devia ser atrás dele...
Mas era:
- Seu Possidônio, sua mulher me mandou aqui...
- O que ela quer?
- Ela disse que a televisão está fora do ar.
- Ora, vá... Diga a ela que bote no "bê".

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