segunda-feira, 2 de março de 2009

OUTRA DO BARNABÉ SEM PÉ

Meu Deus, como é frágil a saúde dos governantes de uma nação! Volta e meia ficam dodóis de enfartes, bolsas de gorduras nas pálpebras, ciáticas, abscessos retroperitoniais e fístulas do duodeno. Tanto que, há muito, já exclui essas doenças dos "livrai-os, Senhor" de minhas orações matinais. Em compensação, estou rezando em dobro para que eles jamais venham a sofrer da mais ominosa das doenças.
A mais ominosa das doenças é, a meu ver, a que ocorre no ouvir: cera nos ouvidos. O governante que adoece com essa moléstia fica inteiramente surdo ao clamor dos governados e, mais gritante ainda, ao clamor dos funcionários de sua administração. É capaz de, entre outras mazelas, reajustar os salários do funcionalismo em 40 mais 30 por cento (depois de um ano em que a inflação foi 99,7 por cento) e, no final das contas, achar(-se) o máximo. Felizmente, isto (a tal doença no governante, suas consequências nos governados) "jamais aconteceu no Brasil", numa prova de que "Deus é...".
Tenho um companheiro de infortúnio, digo, de repartição, que se chama Antonomásio. Desconfio que ele tenha sido batizado com água quente, pois esquenta a cabeça facilmente. Ao saber que, num distante país, o funcionalismo público tinha sofrido um reajuste salarial de 40 mais 30 por cento, que era igual a 82 por cento, quando a inflação havia sido 97,7 por cento no ano anterior, ficou uma fera sem bela. Tomou para si as dores alienígenas e foi deblaterar em praça pública:
- Este reajuste salarial é uma empulhação.
Mas logo apareceu um sujeito, também funcionário público, que, empinando sobre os coturnos pediu licença, isto é, não a pediu para discordar de Antonomásio. Seguiu-se uma discussão dos 82 por cento de Antonomásio contra os 110 por cento do de coturnos, que somente terminou quando este último gritou:
- Boto a tropa na rua.
Antonomásio falante estava, calado ficou. Depois veio me procurar para que eu refizesse, ou não, os cálculos seus de matemática salarial. Ora, Antonomásio, eu não me interesso por matemática salarial do além-mar, sim, mas você é um descendente direto de Não Euclides, o famoso criador da não menos famosa geometria não euclidiana, só que a genética não funcionou em mim, Antonomásio.
Não, mas eu não ia deixar Antonomásio no mato sem cachorro. Lembrei-me de que Sônia, minha namorada, interessava-se por esse tipo de assunto e até colecionava os artigos de jornal do Joelmir Beting. Entretanto, Sônia e eu, há cerca de uma semana, estávamos brigados por um motivo de somenos. Paulo, este grampo que eu encontrei em seu sofá-cama, não é um grampo, é, não é, é, então é seu, eu só uso grampo da marca Teimosão.
Por que só há juízes em Berlim? Deveria existir em Fortaleza um juiz, pelo menos um, para arbitrar essas pendências de namoro. Eu ganharia aquela questão inclusive, porque não era um grampo e sim um burocrático clipe-acima-de-qualquer-suspeita. Como sinal de reconciliação, embora também querendo ajudar Antonomásio, liguei para Sônia, quebrando o gelo baiano que se interpunha entre nós.
- Sônia, você ainda tem aquele artigo do Beting?
- Qual?
- O do "Barnabé sem Pé", que trata do "aumento" do funcionalismo público federal.
- Tenho sim, recortei do jornal.
- Vê aí o que ele diz.
- Que o reajuste foi de 40 por cento em janeiro e será de 30 por cento em junho...
- Prossiga...
- Considerando, porém, a corrosão pela inflação que ocorrerá entre os dois meses, o "aumento" é realmente de 61,5 por cento. 
- O "aumento" é de 61,5 por cento?
- É.
Nisso, Antonomásio, que estava a meu lado, retirou-se bruscamente. Tinha a cara de quem ia fazer uma besteira, do tipo enfrentar tropa na rua, e eu não consegui segurá-lo pelo cotovelo. E olhem que nada foi comentado, em sua presença, sobre a hipercorrosiva inflação de quase 10 por cento apenas no mês de janeiro, nesse remoto país que... tanto mexe com Antonomásio.

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