terça-feira, 3 de março de 2009

ESCREVENDO COM NÚMEROS

Raimundo Magalhães Júnior nos relata uma recreação que esteve em voga no Brasil, aí pela segunda metade do século dezenove: escrever com números. Nesse passatempo, os números eram inseridos em palavras para que fossem lidos como sílabas destas. Quando, por exemplo, alguém compunha "bisc-8", era "biscoito" que se devia ler, por interessar apenas o sentido fonético do número.
Eis algumas sentenças, pinçadas no autor supracitado, para dar uma idéia mais completa do assunto: "O 10-engano é o castigo do 7-tico" (o desengano é o castigo do cético). "O 10-tino do 9-lo é ser 19-lado" (o destino do novelo é ser desenovelado). "O mí-0 está sempre 10-contente" (o mísero está sempre descontente). E ainda: "A baleia, que bem conhe-6, produz o esperma-7" (a baleia, que bem conheceis, produz o espermacete).
Já foi uma mania nacional. Isso que, em dias mais recentes, encontra-se vestigialmente em pára-choques de caminhões. Carneiro Portela, em seu "Máximas, Adágios e Legendas de Caminhões", registra alguns exemplos: "70 me passar, passe 100 atrapalhar", "60 no bar, 70 sair 100 pagar, aí eu mando a polícia 20 buscar". Também atento à fraseologia burlesca veiculada pelos caminhões estradeiros, o autor destas linhas anotou do pára-choques de um deles, esta legenda inusitadamente escrita com números fracionários: "Rezei 1/3 a fim de encontrar 1/2 de te levar a 1/4".
Pertence a Filinto de Almeida, que se assinava F. d'A, a composição de maior fôlego desse passatempo. Ele, no último quartel do século dezenove, publicou no "Jornal do Povo" do Rio de Janeiro, os seguintes versos, todos eles terminados por números:
"Veio um dia ao Brasil um holan-10
E comeu de uma vez tanto bisc-8
Que de cheio e repleto nem 60
E fez por causa disso o diabo a 4.
Dá-lhe logo o doutor tão forte 12
Que ao ventre causou-lhe mil 10-as-3.
Então suplica o enfermo a um fran-6
Que era dos seus lamentos triste ou-20
Que por graça à saude lhe re-9,
Pois que ele a tinha forte como um br-11.
E o súcio, escutando a voz do mí-0,
Compassivo a curá-lo então 70
E curou-o metendo-lhe o ca-7!"
Esse F. d'A era um n-1-mero, vocês não acham?

(escrito em 1983 e revisado em 2009 
para publicação no Preblog e no EntreMentes)

Nenhum comentário: