quarta-feira, 28 de maio de 2008

O FAROL

Poderia ser chamado de farol do cafundó-de-judas, do caixa-pregos, do cornimboque do Diabo ou de farol com qualquer outra expressão do gênero. Que desse a idéia de estar situado num local ermo, afastado. Ou, ainda, simplesmente ser chamado de O Farol (menos de O Farol do Fim do Mundo, porque aí já seria plagiar Julio Verne). E, digamos que o farol em questão (Santa Sutileza, que quase me fez dizer "em foco"!) fora erigido numa ilha pequena e montanhosa - uma ilhota! A fim de que, na escuridão da noite, protegesse as embarcações da destruição contra os arrecifes. E, desse modo, evitar que vidas humanas servissem de repasto aos tubarões.
Quantos rochedos e arrecifes havia por ali onde um navio, em noite de breu, poderia bater! Sobrosso acontecia algum, porém aquele farol era a única garantia para uma nau atravessar aquelas águas sem... sobroço. Daí a importância do trabalho do guardião do Farol. Subir, todas as noites, a comprida escada helicoidal que ia dar na sala onde ficavam as grandes lanternas. A seguir, ajudado por Georges, imediato de guardião, encher de óleo o reservatório das grandes lanternas, as quais eram postas a iluminar o oceano (mas não todo o oceano, como pensava Georges).
Uma noite, porém, o faroleiro notou que muitas das residências da ilhota estavam às escuras. Pois que existiam outros moradores naquela ilhota (afinal, vocês não estão lendo o romance de Julio Verne). E ele procurou saber o motivo de tanta escuridão doméstica. "A falta de óleo para as lâmpadas", responderam-lhe. "E o navio de suprimento não vem antes de um mês. O que é a ironia, senhor. Mandamos luz para o oceano, mas não a temos em nossas casas". Embora não gostasse muito desse "mandamos" (pois era ele quem mandava), o guardião ficou de estudar a solução.
Logo, ei-lo em casa entregue a reflexões. Com os dedos maquinalmente entretidos com o pêlo bem cuidado de Philippe-Auguste, o fiel cão. Que é relaxante fazer pitó em pêlo de cão, lá isso é. Ademais, ajuda a aclarar as idéias... Ei! Quem sabe se ele emprestasse uma partezinha do óleo sob a sua guarda aos moradores, a fim de que suas lâmpadas voltassem a brilhar? Isto imaginado, o faroleiro com um safanão afastou Philippe-Auguste para que este fosse banzar em outro lugar e levantou-se. Foi cubar a reserva de combustível a ver se dava para realizar alguma beau geste. Não dava, é verdade, mas o guardião ainda assim preferiu correr o risco de emprestar o óleo. A ter de contrariar uma voz interior, arrastada nos erres, desde o início a favor do empréstimo.
Então, chamou Georges para que distribuísse entre os moradores, a cada um conforme as necessidades, o escasso combustível. Com isso, transgredindo as normas que diziam ser aquele combustível para uso exclusivo do Farol. E, aventuro-me a dizer, o que também moveu o guradião a tanto. Ter os ilhéus nas palmas das mãos, presos pela gratidão. Este sentimento que, em tempos de política (o guardião tinha um projeto), traz certos dividendo ao politicalho. Desse modo, daí a nada, em todas as casas da ilhota, estavam as lâmpadas a queimar o óleo amigo.
Não houve quem não vivasse o faroleiro. E, como dantes, os ilhéus voltaram a se alegrar nos fandangos bailados.
Até que, numa noite, o guardião foi visitado por um sonho. Ele sonhou que era o faroleiro de uma outra ilha - sem farol! Na qual a sinalização era feita pelos disparos periódicos de um canhão. Que eram dados de hora em hora, com pólvora seca - mas que produziam barulho e clarão suficientes para alertar os navegantes próximos. E, nesse mister, ele se revezava com alguém bastante parecido com Georges, só que mais retaco. A quem inclusive caberia o canhonear seguinte (visto que o guardião dormia e mesmo sonhava). No entanto, na hora devida o ajudante não deu a canhonada. O que fez com que, naquele momento de estampido nenhum, o guardião acordasse sobressaltado.
Algo de ruim se pressagiava. E, tomado de um mau pressentimento, o faroleiro subiu apressadamente até a sala das grandes lanternas. Estavam apagadas, e lembrou-se de que Georges antes comentara a respeito do fim iminente do combustível. E, não estando o Farol a facheá-lo, o oceano em volta era um pretume só. Ouvia-se o vento, o quebrar das ondas, gritos... Apurou os ouvidos. Sim, ouviam-se gritos. Mon Dieu, estava a acontecer ali um grande naufrágio e ele nada podia fazer. Recém se espedaçara um navio nos rochedos, gritos de desespero varavam a medonha escuridão, e ele... ele... nada podia fazer.
E não ficou somente naquele naufrágio. Ainda aconteceriam outras tragédias marítimas, todas elas por falta de um facho de luz que orientasse, durante a noite, as embarcações... (Não, não substituía o Farol a luz bruxuleante de umas tantas lâmpadas domésticas, pois estas mal alumiavam os compartimentos em que eram postas.) Até raiar uma manhã em que, ao se contabilizar o sexto naufrágio, constatou-se também que o pior tinha acontecido. Havia, na última noite, colidido contra os rochedos o navio de suprimento, o qual era responsável pelo abastecimento da ilhota. De praticamente tudo: do óleo combustível para o farol aos gêneros alimentícios que todos consumiam.
Tempos depois, intrigado com o sumiço de tantos navios, o continente resolveu apurar os fatos. Mandando um navio na rota dos desaparecimentos, com atenção especial ao que pudesse ser encontrado nas coordenadas geográficas do Farol. Lá chegando, as autoridades, que já haviam concluído sobre o que acontecera (pela visão dos destroços flutuantes cujo número ia aumentando enquanto se aproximavam da ilha), verificaram ainda o seguinte. Hélas!, nenhum ser humano estava vivo, a todos matara a inanição. Ah, terra sáfara, aquela...
Pois unicamente, e transformado no mais esquálido dos cães, sobrevivera Philippe-Auguste. E com alento apenas para abanar a cauda (em saudação às autoridades), cerrar os olhos e, em seguida, adentrar um trevoso país. Onde, ao que tudo indica, não verá farol nenhum como aquele.

PRESCRIÇÕES

Antologia de prosa e poesia publicada em 1994 por SOBRAMES, Regional do Ceará.
Patrocínio: UNIMED de Fortaleza.
Autores: Walter Miranda, Wellington Alves, Tarcísio Diniz, Roque Muratori, Pedro Henrique Saraiva Leão, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Manassés Claudino Fonteles, Luciano Lira de Macedo, Luiz Gonzaga de Moura Júnior, Luiz Teixeira Neto, José Maria Bonfim de Morais, José Maria Chaves, José Rômulo Barbosa, Helio Rola, Hamilton Monteiro dos Santos, Geraldo Bezerra da Silva, Francisco Nóbrega Teixeira, Francisco Sampaio de Oliveira, Francisco das Chagas Medeiros, Flávio Leitão, Emanuel de Carvalho Melo, Elcias Camurça Júnior, Dalgimar Beserra de Menezes, Cleto Brasileiro Pontes, Chico Monteiro, Celina Corte Pinheiro, Caetano Ximenes Aragão, Antero Coelho Neto.
Editoração e Impressão: Expressão Gráfica e Editora Ltda.
Tiragem: 2.000 exemplares.
Livro com 210 páginas.

terça-feira, 20 de maio de 2008

DR. ASDRÚBAL E A MORTE

Se todo médico fosse como Dr. Asdrúbal a Morte teria bem menos o que fazer. Talvez até perdesse a razão de existir, envenenando-se a seguir com a própria saliva. Porque o bom doutor, com a dedicação de um legítimo filho de Hipócrates, de um modo tão eficaz assiste os seus pacientes que eles logo estão sarados. Para o desespero da Morte que, em cada enfrentamento perdido, vê desmilingüir o seu poder mortífero. Não sendo impensado dizer que, a persistir esse quadro adverso, dia haverá em que ela vai estar relegada aos casos declarados de iatrogenia.
Já virou cena comum Dr. Asdrúbal e a Morte se encontrarem, à beira de um leito, para travarem a titânica luta. Cujo término se dá, na maioria das vezes, com o facultativo "arrancando a vitória das garras da derrota". E, por conseguinte, com a Morte batendo em retirada sem conseguir realizar o seu terrível capricho. Nada mais nada menos, o de fazer as pessoas, no fim da vida, comerem capim pela raiz. Com suas liquidações a varejo, naturalmente - enquanto não chega o prometido Apocalipse.
Por sua atuação humanitária, o reto doutor é visto pela Morte como inimigo. Assim é que, numa vez, achando-se ela descontrolada, bateu com as luvas (não esterilizadas) no rosto do médico. Desafiando-o para um duelo, já que este agressivo gesto outra coisa significar não costuma. Bem, como Asdrúbal covarde não é, o desafio foi aceito. E dia, hora e local foram combinados, assim como quais as armas que seriam por ambos utilizadas. Com a Morte escolhendo a foice e o Dr. Asdrúbal, o bisturi. Embora pudesse de última hora mudar para a serra cirúrgica.
Naquele dia, a caminho de casa, Asdrúbal andou... a matutar: como iria vencer a difícil peleja? Pois matar o que já estava morto é algo tão difícil quanto puxar o saco de um eunuco. Além disso, a ceifadeira de vidas era uma notória trapaceira, acostumada a enganar a humanidade sofredora. Quem, por exemplo, não ouviu falar da melhora que o paciente experimenta um pouco antes de morrer? Ah, só isto já dá uma idéia de quão ardilosa ela é... Capaz de múltiplos engodos, entre os quais simplesmente o de não comparecer ao duelo marcado. Por vigarice, em seu lugar, mandando um cover; ou um coveiro, tanto faz.
Mas, tão certa da vitória a Morte estava que, conforme havia combinado, veio. Dr. Asdrúbal reparou bem que era ela: a figura esquelética (envolta num manto roxo que esvoaçava ao vento), a voz cavernosa, o odor característico de... Morte. Conhecia, sim, a figura de muitas outras lutas, digamos, terceirizadas em que a pele dele não estava em jogo. E, como se não bastasse o terror que infundia, ela se fazia acompanhar de padrinhos. Ou melhor, de madrinhas... pois eram as Três Parcas. Enquanto o desafiado estava... sozinho e, nesse exato momento, já se arrrependendo de uma certa besteira cometida.
A besteira aqui sendo dissecada: o local do duelo ser o cemitério da cidade, haver ele concordado com isso. Dando assim a vantagem de campo (santo) para a Morte.
Todavia, um pouco antes de terçar as armas, o magnânimo (os adjetivos estão aumentando!) Dr. Asdrúbal teve uma idéia magistral: envolver a Morte com uma proposta irrecusável do tipo "posso resolver este seu problema de magreza constitucional". Apostando, vê-se muito bem, na esqualidez da Morte como sendo a causa única do seu comportamento antissocial. Apesar de uma proposta dessas, ao encontrar receptividade do lado adversário, por si já caracterizar o espetáculo como uma marmelada. Mas, ora, que é que tem isso? Dr. Asdrúbal sempre foi um firme adepto das teorias de Lombroso, e quem defende estas teorias quer sempre, custe o que custar, realizar a contraprova. A qual, no caso vertente, consistiria em submeter a magra personagem a uma terapia de ganho ponderal e, em seguida, avaliar-lhe as modificações da índole para melhor. No pressuposto de que a Morte concordasse com a experiência, claro.
Então, com a palavra a mortífera senhora.
Para a surpresa geral (mas não deste narrador), a Morte topou.
Hoje, restabelecendo-se dessa "Batalha de Itararé" (da vitória do tirocínio sobre o morticínio), ela pode ser encontrada em algum lugar deste planeta. Inteiramente voltada aos prazeres da vida, como se busacasse recuperar o tempo perdido. E, se o dia é de sol, talvez esteja em algum recanto parasidíaco, em alguma praia é provável, a atrair olhares cúpidos para o seu corpo de rijas carnes - o resultado de um tratamento bem conduzido. Num estilo de vida que nada tem a ver com o passado, e daí, nesta inusitada circunstância, surgir uma grande dúvida.
Alguém questionar como é possível se as pessoas, no mundo todo, ainda continuam a morrer?
Continuam a morrer, sim. Só que agora é por uma questão de inércia, garante Asdrúbal.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A BOMBA

Isto aqui é Drummond: "A bomba / não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefável." É, prelibar pode. Mas que nunca dêem à bomba as coordenadas da explosão, acrescento eu. Que ela continue sendo a mesma besta de sempre, sem saber quando, onde e porquê. Mas, para tanto, é preciso não bestar o bicho-homem. Nunca apertar o botão do disparo. Só músculos, a bomba é capaz de não deixar uma xicrinha sobre pires nesta loja de louças chamada Terra.
Melhor ainda é que ela vá à Lua, assovie... mas não volte. O leitor não queira assistir na Terra a um espetáculo (bomba!), que lhe pode custar muito. As meninges assadas. E não bastassem a dor, a morte, os danos materiais, a metuenda, a ferotriste é capaz de muito estrago mais. A subversão da onomatopéia, por exemplo. Os sobreviventes da catástrofe atômica ver-se-ão afligidos, no após-bomba, pela total desorganização da onomatopéia. E isto não promete ser pouca coisa, senão ouçamos:
Por afetado no maquinismo do tempo, o relógio nos acordará a desoras com um persuasivo cocoricó. E se ainda houver galos e quintais, os primeiros subirão aos alambrados dos segundos, e tilintarão anunciando o Sol. Mas que Sol, meu Deus? Se a Terra toda estará num tenebroso inverno nuclear, com as chuvas caindo por todas as partes. Sim, as chuvas caindo fazendo frufru, para a alegria das rãs que estarão zunindo nos charcos. Pobres batráquios, não vãos ignorar as terríveis serpes ribombantes, seus inimigos naturais.
O que a bomba avariou mais? A fonte de emissão do som, o meio elástico de propagação ou o humano ouvido? Esta pergunta mugirá no ar, leitor. E, por não achar a resposta exata, um professor de Acústica afofado do juízo (pela bomba) se suicidará. Pensará na faca, seu medonho chuá, mas depois usará o revólver. Que, obviamente, fará tititi. A Semiologia Médica mudará um bocado. Porque os corações trinarão, os brônquios farão ruge-ruge, os intestinos... rataplã.
É... a bomba não tem aplomb. Basta dizer que a maléfica privilegiará os fanhos, fazendo-os subir do atual estamento que é péssimo. O rádio, a televisão, o leilão oficial pagarão qualquer preço para ter um fanho. Toda voz roufenha será premiada. Dinheiro, prestígio, limusine e o fon-fon das multidões. E o Fernando Bicudo (o que restar dele) promoverá no Teatro Municipal uma ópera só com fanhos. A Ópera Trava-Línguas.
Ah, teremos que reprogramar os ouvidos! Para o cataprus de alguém que nos chama, o clique de algo que cai na água, o zás-trás da sirene da fábrica, o psiu de um objeto que despenca, o tibungo da máquina fotográfica, o cricri do sino da matriz... E Santé! Para o murmúrio das taças que se entrechocam à nossa saúde. Já no elevador, o desbragado soltador de pum perderá para sempre o anonimato de que antes gozava. Porque, na nova ordem onomatopaica, vai cainhar feito o cão cujo rabo é pisado.
Na confusão geral do após-bomba, o bate-estaca ganhará um suave ronronar. O condicionador de ar fará baticum. E assim por diante. No final, feitas as contas (sonométricas), a poluição sonora não haverá baixado um mísero decibel. Numa prova de que o bicho-homem, antes e depois da bomba, foi e também será o mesmo martelão (quer dizer, o sujeito que só aprende à força de muito repetir). Ou, talvez, nem isso.
E quem (sobre)viver, ouvirá. À noite, o grilo preencher a tão falada insônia coletiva com o seu intérmino gluglu. Dormiremos com um ziguezague desses?

quinta-feira, 15 de maio de 2008

A ROUPA NOVA DO REI

UM CONTO REVISITADO

ERA UMA VEZ um rei muito vaidoso de nome Nando. Certa manhã, nessas manhãs cheias de luz, ele recebeu a visita de dois alfaiates que, após as devidas apresentações, lhe prometeram fazer um novo traje real. "Como nunca se tinha visto antes", enfatizaram. Precisariam apenas de um local no palácio, tempo suficiente e, claro, algum financiamento. E, para que a empreitada não sofresse dificuldades que a pusessem no rol das obras de Santa Engrácia, por conta disso, é que o rei baixou uma resolução. Em se tratando da feitura do traje real, que Mizélia, a ministra da Fazenda, não observasse limite nos gastos.
Instalados no palácio real, os dois alfaiates - em verdade, dois espertalhões - passaram ao exercício de uma grande trapaça. Simulando que estavam a trabalhar, com agulhas e linhas imaginárias, longas horas eles ficavam a coser um tecido idem. E, quem entrasse no recinto, não podia ignorar que havia ali uma obra-prima em andamento. Porque, assim, estaria a passar um recibo de estúpido. Os dois espertalhões, antes de qualquer coisa, haviam divulgado o seguinte: o traje real, em sua beleza jamais vista, não se revelaria aos olhos daquele que fosse curto da inteligência.
Muitos meses após, e com muito dinheiro já embolsado, os dois velhacos deram por terminada a obra. A tempo de o rei Nando poder usá-la na Descida da Rampa, a festa máxima do reinado. Quando o povo, em sua melhor roupa, apinhava-se nas ruas para saudá-lo (e ver também as autoridades que não estavam sendo "fritadas"). A Claudio, secretário do rei, é que coube receber e dar a derradeira palavra sobre o traje real. Com Claudio da Capetinga, como era do feitio, aproveitando a oportunidade para fazer em cima dos dois falsos alfaiates uma caprichada rasgação de seda. Embora nem deste nem de qualquer outro material fosse feito o traje.
Levado o traje à sala de paramentação, a surpresa de Nando. "Roera o rato a roupa do rei?" - eis a frase com que ele intimamente se perguntou. Sim, porque não estava vendo nada daquilo que lhe era mostrado como traje. Ultimamente, é verdade, vinha a sua inteligência despencando... junto com a popularidade. Mas, daí a admitir que ele, um poço de sabedoria, houvesse de todo secado... Ah, não, ainda existia espaço para muita corda. Como a que lhe deu o secretário, com a clara intenção de lhe tirar dos titubeios. Ao citar, com a ênfase que a ocasião requeria, que "o essencial é invisível para os olhos".
Com alguma dificuldade, para não confundir a ceroula com o manto, rei Nando vestiu-se.
Fazia um frio medonho naquele dia. De modo especial para Nando, que só não tiritava ainda mais por se encontrar cercado de áulicos, seguranças e convidados. Dentre estes, uma dupla sertaneja que, por qualquer dá cá aquele chapéu de palha, punha-se a cantar o "Entre capas e pejos", a trilha musical do reinado. Ora, com tanto aparato assim, a Nando restava não ser um "pouca roupa" no plano psicológico. Desconforto térmico à parte, ele tinha de dar início à Descida da Rampa. Para ir ao encontro de sua gente que, já sufocada pelo cotidiano, apertava-se também nas ruas para vê-lo.
O cortejo pôs-se em andamento. A expectativa geral era de que, ao fim do desfile, Nando subisse no palanque da praça para a fala real. Um discurso "pró-lixo" que, invariavelmente, começava com um "maranis e marajás" e o resto era besteirol puro.
Nisso, o que aconteceu foi ouvir-se um "oh" coletivo - o povo tomado de espanto! Seria verdade, verdade o que todos estavam a ver? O rei pelado, pelado como se estivesse a gravar uma externa de filme pornô...
Havia crianças presentes, muitas. Mas os adultos, a se indignarem com a situação, preferiram manter um silêncio respeitoso. Com o espírito de que "quem já viu não estranha, quem nunca viu não sabe o que é". E porque, na presença de um rei, é preciso de prudência, prudência e prudência (para não cometer algum crime de lesa-majestade). Pois bem, mas eu estava a falar de que se fazia um silêncio respeitoso no meio do poviléu. So que esse silêncio, instantes após, aconteceu de ser inapelavelmente quebrado por um "pentelhinho". (Ô nome apropriado para a criança desta história!)
Um "pentelhinho" que, não querendo ser conivente com a farsa em seu quesito evolução, todo gasguita berrou:
- Mãe, o rei tem aquilo roxo!

No que escutou, rei Nando inicialmente se espantou com a exatidão do comentário. Adiante, já refeito do impacto sentido, e por achar que até granjearia respeito com a divulgação, ele se apropriou da expressão escutada. E, em sua peroração à massa, declarou ter realmente "aquilo roxo". Pouco atinando que tudo não passava de um simples arroxeamento pelo frio nos "anexos da estrovenga", eis toda a verdade.

sábado, 10 de maio de 2008

COM A CARA E A COVARDIA

Lourenço era o tipo do sujeito frouxo. Desses de levar desaforo para a casa porque, na "hora R" (de reagir), já se via... Lourenço se punha atremer que nem palma de coqueiro-babão. E... pernas para que vos quero, não está mais aí quem falou, Deus é grande mas o mato é maior, enquanto eu correr meu pai tem filho, para os mortos sepultura e para os vivos... escapula! Boi é pouco, Lourenço dava logo a boiada inteira para não entrar em briga, discussão ou entrevero (com o magarefe do bairro, então avaliem).
Poltronaria à parte, havia um projeto por que Lourenço se babava de um modo torrencial. Ir, pelo menos uma vez, ao Forró do Arnaldo que existia e dava função nas proximidades de sua residência. Principalmente quando, ao portão de casa, ele via o desfilar do mulherio a caminho do forró. Cada mulher de deixar Lourenço entre embevecido e assanhado. Numa de imaginar-se em plena sessão bate-coxa com uma delas, depois com outra e outra, botando para fora (epa!) a própria timidez.
Mas... cadê coragem para adentrar aqueles domínios de cabra-macho? Sim, porque outra coisa não era o Forró do Arnaldo. A dar crédito a umas tantas histórias que circulavam pelo bairro, e que causavam frio na espinha de quem as ouvia, era bem perigoso o arrasta-pé. Havia acontecidos em profusão que patenteavam a macheza de seus freqüentadores - uns homens capazes de, a uma minúscula provocação, logo estripar quem na frente estivesse! De fato, assim não dava para Lourenço, o Frouxo. Que sentia contorção intestinal só ao pensar em tal ambiente metido.
Ah, não estando sob forte coação, naquele local ele jamais poria os pés!... Coragem não é dor-de-dente que dá em todo mundo!
Um dia, porém, Lourenço se viu obrigado a fazer das tripas (epa!) coração. Por haver aceitado um convite da parte de Ermelinda - mulher de fechar o shopping center - para ir ter com ela, sabem onde? No Forró do Arnaldo, acreditem, e não podendo faltar! Pois Ermelinda era a personagem mais habitual em seus devaneios de rapaz solito. Mas que agora, graças a Deus, começaria a perder a diafanidade, para se tornar um ente de carne e osso (mais o primeiro item) a entrar em sua vida. Desde que ele, claro, não perdesse bestamente a oportunidade ali surgida.
Convém dizer que Lourenço, instantes atrás, ao passar Ermelinda perto dele, deixara escapar uma espécie de assovio. Coisa de quem sofre de dispnéia suspirosa. Nada a ver, portanto, com algum assanhamento que estivesse a apresentar, embora a rapariga (no sentido bom, lusitano da palavra) lá isto bem merecesse. Só que, havendo interpretado o assovio por galanteio, a boazuda da Ermelinda se achegara para um papo inicial, vindo daí o convite. E para vir depois o xodó, o amor, a paixão, bastaria Lourenço não fraquejar.
Forró do Arnaldo, às nove horas da noite, como ficou combinado. Com o coração dele, a partir daquele "até logo", indo do peito para a boca, e voltando, o sangue cedendo lugar à adrenalina... Mas, como ainda havia hora e meia pela frente, que fazer? Que fazer? Bem, tomar algumas cervejas no boteco em frente ao forró. Assim, matava-se o tempo, amenizava-se a ansiedade e, nesse entrementes, ainda podia se submeter a uma anteprova de cabra-machismo (pois era no boteco onde muitos costumavam "fazer a base" para entrar no forró). De que, se ele saísse com louvor, ficaria cheio de moral para enfrentar o arrasta-pé.
Feito! Ei-lo, então, a pagar a conta no boteco. A seguir, meio sobre o intrépido, ei-lo a atravessar a rua para entrar no Forró do Arnaldo. Onde Ermelinda toda amorosa, gentil e sensual, estaria a esperar por ele, certamente. Enquanto Lourenço, prelibador é o cão, já a sentir que a pressão ia dar, que a voz não ia embargar, que as pernas não iam tremer... Só pensamento positivo, afinal, que nada de ruim, desagradável ou funesto lhe poderia acontecer. Estavam contidos todos os medos, pânicos e fobias. Tudo por amor à Ermelinda.
Agora, ei-lo a receber na palma da mão a inesquecível carimbada. Como quitação aos cem cruzeiros desembolsados para entrar no Forró do Arnaldo. E, no momento imediato, ei-lo já a exibir o insólito ingresso (que vem a ser a própria mão carimbada) ao crioulão porteiro... Quando este, de um modo absolutamente inoportuno para quem a todo transe busca o autocontrole, crava-lhe a terrível pergunta: "Tem faca?" E, indiferente a um apavorado "n-n-não" que é o que sai da boca de Lourenço, nisto não fica o crioulão. A fim de que Lourenço use à cintura, enquanto durar a festa, vai, oferece-lhe um exemplar (dentre os muitos que estava a distribuir) do chamado objeto cortante que tem cabo e lâmina. Com esta recomendação final: "Devolve na saída."
Mas que saída? Se não aconteceu ali, como não acontecerá jamais, a entrada de Lourenço no Forró do Arnaldo. Por mais que lá vicejem as ermelindas.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

MARCHA À RÉ

1
Com o primeiro automóvel fabricado no Brasil surgiu também a imagem ideal para descrever o desempenho da nossa economia.
Vamos lá.
É que coube a JK, no fim dos anos 50, como pai da nascente indústria automobilística, o mérito de engrenar a primeira. E a Jânio (sob os seus protestos de que o veículo não era movido a álcool), a segunda marcha. Quando o veículo, então, tomado de enguiços ocultos, deu pinotes, estancou.
Jango pegou o volante, tendo problemas com a caixa de câmbio. E bastou dar uma guinada à esquerda para fazer o veículo tombar.
A seguir, fardados motoristas se revezaram na direção do veículo. Engrenando a terceira, a quarta... O carro era o "milagre brasileiro". E nós obrigados éramos a usar o cinto de segurança nacional. Sei não, mas como a conjuntura internacional na época se mostrava favorável, sou hoje levado a pensar que o carro estava "na banguela". Ou, então, simplesmente a reboque da economia norte-americana.
Com Figueiredo a farsa acabou. Gostar ou não gostar do cheiro dos cavalos foi a questão do seu tempo.
Nos anos 80, o automóvel só andou com o freio de mão puxado.
E veio a era Collor, com o carro enfrentando uma crise de identidade: provar que não era carroça. Aí, tome marcha à ré nele!
Teríamos recuado muito, não fora o roubo brabo de combustível.
Mas, o fato é que chegamos. De volta ao passado. O homem (ao volante) é Itamar, a mulher pode não existir e o carro é... o fusca.
Cada economia tem o Deus ex machina que merece.
2
O Brasil não tem um animal-símbolo. Como os Estados Unidos que são lembrados pela águia que, a nosso ver, não passa de um símbolo rapinado da antiga Roma. Como também a Rússia, a Grã-Bretanha e a Austrália, importantes nações que, de modo informal, são representadas pelo urso, leão e canguru, respectivamente.
Mesmo a Sereníssima República de San Marino já tem o seu símbolo oriundo do reino animal: a ameba. E a África do Sul acaba de se fixar na zebra, um animal branco de listras pretas (ou vice-versa, conforme o CNA), símbolo mais que perfeito para o país do apartheid!
O Brasil não se chama Peru para estar, por motivos óbvios, dispensado da escolha do seu animal-símbolo. Nem se chama Serra Leoa. Nem República dos Camarões. Por isso, não pode desprezar essa estratégia de marketing, usada há muito tempo por empresas, partidos políticos e times de futebol.
Urge, assim, escolhermos o animal que nos sirva de referencial no chamado concerto das nações. Com todo o merecimento, já que somos o berço do jogo do bicho e que é aqui onde o horóscopo manda ver.
Então, declaremos aberta a temporada de caça ao animal que vai simbolizar o país. Com a esperança de que ele, devidamente subjugado, aceite o espinhoso cargo. Pois, conforme o caso, podemos ameaçá-lo com a jaula, o empalhamento e os nossos estômagos.
Sugestões já estão sendo recebidas. Dentre as quais, a de um nome que, numa seleção ampla e irrestrita, deve se mostrar imbatível.
O caranguejo. Que, igual ao Brasil, tem o aferrado costume de andar para trás.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

ESMERALDAS

Antologia de prosa e poesia publicada em 1993 por SOBRAMES, Regional do Ceará.
Patrocínio: UNIMED de Fortaleza.
Autores: Antero Coelho Neto, Caetano Ximenes Aragão, Celina Corte Pinheiro, Cleto Brasileiro Pontes, Chico Monteiro, Claudio Gladiston Lima da Silva, Dalgimar Beserra de Menezes, Elcias Camurça Filho, Emanuel Carvalho Melo, Francisco Nóbrega Teixeira, Flávio Leitão, Geraldo Bezerra da Silva, Hamilton Monteiro dos Santos, Helvécio Neves Feitosa, José Maria Bonfim, José Rômulo Barbosa, Luiz Gonzaga de Moura Júnior, Luiz Teixeira Neto, Manassés Claudino Fonteles, Marcelo Gurgel Carlos da Silva, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Pedro Henrique Saraiva Leão, Roque Muratori, Sinara Targes Perfeito, Tarcísio Diniz e Walter Miranda.
Editoração e Impressão: Expressão Gráfica e Editora Ltda.
Tiragem: 2.000 exemplares.
Livro com 178 páginas.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

DR. CARTA PÁCIO E O LOTEAMENTO HUMANO

Encontrava-me no diário jardinar, entre muitas flexões e reflexões, quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta na mão. Ante a surpresa tão rude, não sei como pude chegar ao portão. Mas, cheguei e ... Ah, como eu já conheço aquela letrinha gótica! Pois lendo o envelope bonito, em seu sobrescrito eu reconheci: Dr. Carta Pácio, o missivista-filósofo da mirabolância!
Eis na íntegra a sua última carta:

"Prezado senhor,

O assunto ao qual chamo a sua atenção é da mais alta importância, uma vez que se relaciona com algo que nos é muito precioso: o corpo. Alicerçado em que consultei, à exaustão, os compêndios de anatomia de minha privada biblioteca (privada enquanto adjetivo, bem entendido). E que, após a tal consulta, acabo de chegar a uma irrefutável constatação. O homem tem - pasme o senhor! - o domínio útil do seu corpo, mas em verdade não é dele proprietário. Quer dizer, ele ganhou o corpo do qual deve tirar proveito (antes de o dar aos vermes); no entanto, ele chegou tarde.
Isto porque os homens da ciência - anatomistas, na maioria - estabeleceram o loteamento da carcaça humana. Nada deixando a que não se reportassem através de um de - partícula que confere relação de posse. A começar por Adão, não propriamente um anatomista (apenas um nomeador dos seres vivos em geral). Quando deu o nome a este belo pomo que o senhor carrega no pescoço, integrando os seus caracteres sexuais masculinos. O que é, aliás, aceitável, Adão, o super Adão, foi o pai primordial. Em nenhuma hipótese, porém, eu coonesto o que aconteceu depois.
Por exemplo, um guerreiro grego, naquilo que ele tinha de mais frágil, emprestar o nome ao mais robusto tendão do corpo humano. O guerreiro Aquiles, e chega a ser irônico o fato. Como também não coonesto o loteamento do homem pelos anatomistas de todos os tempos e lugares, só porque o dissecaram com o fim de estudo. E aproveito aqui para nobilitar os precursores da ciência que trata da forma e da estrutura do ser humano. Demócrito, Anaxágoras, Alcméon, Empédocles... mas esses homens eram uns filósofos!
No corpo humano não há ligamento, esfíncter, aponeurose, válvula, prega e forame que não pertença a algum anatomista do passado. São exemplos do que eu digo o gânglio de Gasser (neurogânglio sensitivo do trigêmio), as pregas de Kerckring (da mucosa do intestino delgado) e de Houston (da mucosa do reto), o coxim de Bichat (a massa adiposa da bochecha), a cisterna de Pecquet (dilatação da extremidade inferior do ducto linfático), a válvula de Braune (na junção do esôfago com o estômago), a aponeurose de Dupuytren (fáscia que reveste os músculos da palma da mão), o forame de Vesalius (orifício do osso esfenóide), o ducto de Stenon (da glândula salivar parótida)...
A relação é por dizer interminável. Máxime porque, numa certa fase da retalhação anatômica, passaram a nomear os ângulos. O que Broca, Camper, Alsberg, Daubenton, Mulder, Ranke e tantos outros fizeram ao crânio. Os espaços. O que Traube, com igual espírito, fez ao lugar ocupado pelo estômago... Sei não, mas fica a parecer com outros loteamentos por aí, que não primam exatamente pela honestidade. O espaço de Donders, que fica entre o dorso da língua e o céu da boca, quem é que cai nessa? Só o incauto - e com alguma salivação, acrescento.
E não parou aí a volúpia loteadora. Com o advento da microscopia óptica, os histologistas e os citologistas entraram na jogada. E tome aparecer uma alça de Henle no rim, uma célula de Clara no pulmão, outra de Küpffer no fígado. Até mesmo ilhotas, como as de Langerhans no pâncreas. (Ah, o ideal de possuir uma ilha que a poucos é dado concretizar!) Também os embriologistas. E tampouco sei onde tudo isso vai parar. Agora, principalmente, que a microscopia eletrônica mostra tudo em nível subcelular. Está aí o aparelho de Golgi que não me deixa mentir.
Ainda bem que não é pela enfiteuse. Neste regime, além de pagar foro anual a essa turma toda, seríamos obrigados a conservar órgãos, aparelhos e sistemas... sem qualquer deterioração. E isso, meu prezado senhor, simplesmente não o fazemos.
Aguardando uma resposta abonadora, renovo-me seu, sinceramente

Dr. Carta Pácio."

Que desatualizados cartapácios não deve ter lido o Dr! Para ignorar que a nomenclatura anatômica de há muito aboliu os epônimos. Pois estes, além de nada significarem morfológica e funcionalmente, por vezes não passavam de uma injusta homenagem histórica.