terça-feira, 20 de maio de 2008

DR. ASDRÚBAL E A MORTE

Se todo médico fosse como Dr. Asdrúbal a Morte teria bem menos o que fazer. Talvez até perdesse a razão de existir, envenenando-se a seguir com a própria saliva. Porque o bom doutor, com a dedicação de um legítimo filho de Hipócrates, de um modo tão eficaz assiste os seus pacientes que eles logo estão sarados. Para o desespero da Morte que, em cada enfrentamento perdido, vê desmilingüir o seu poder mortífero. Não sendo impensado dizer que, a persistir esse quadro adverso, dia haverá em que ela vai estar relegada aos casos declarados de iatrogenia.
Já virou cena comum Dr. Asdrúbal e a Morte se encontrarem, à beira de um leito, para travarem a titânica luta. Cujo término se dá, na maioria das vezes, com o facultativo "arrancando a vitória das garras da derrota". E, por conseguinte, com a Morte batendo em retirada sem conseguir realizar o seu terrível capricho. Nada mais nada menos, o de fazer as pessoas, no fim da vida, comerem capim pela raiz. Com suas liquidações a varejo, naturalmente - enquanto não chega o prometido Apocalipse.
Por sua atuação humanitária, o reto doutor é visto pela Morte como inimigo. Assim é que, numa vez, achando-se ela descontrolada, bateu com as luvas (não esterilizadas) no rosto do médico. Desafiando-o para um duelo, já que este agressivo gesto outra coisa significar não costuma. Bem, como Asdrúbal covarde não é, o desafio foi aceito. E dia, hora e local foram combinados, assim como quais as armas que seriam por ambos utilizadas. Com a Morte escolhendo a foice e o Dr. Asdrúbal, o bisturi. Embora pudesse de última hora mudar para a serra cirúrgica.
Naquele dia, a caminho de casa, Asdrúbal andou... a matutar: como iria vencer a difícil peleja? Pois matar o que já estava morto é algo tão difícil quanto puxar o saco de um eunuco. Além disso, a ceifadeira de vidas era uma notória trapaceira, acostumada a enganar a humanidade sofredora. Quem, por exemplo, não ouviu falar da melhora que o paciente experimenta um pouco antes de morrer? Ah, só isto já dá uma idéia de quão ardilosa ela é... Capaz de múltiplos engodos, entre os quais simplesmente o de não comparecer ao duelo marcado. Por vigarice, em seu lugar, mandando um cover; ou um coveiro, tanto faz.
Mas, tão certa da vitória a Morte estava que, conforme havia combinado, veio. Dr. Asdrúbal reparou bem que era ela: a figura esquelética (envolta num manto roxo que esvoaçava ao vento), a voz cavernosa, o odor característico de... Morte. Conhecia, sim, a figura de muitas outras lutas, digamos, terceirizadas em que a pele dele não estava em jogo. E, como se não bastasse o terror que infundia, ela se fazia acompanhar de padrinhos. Ou melhor, de madrinhas... pois eram as Três Parcas. Enquanto o desafiado estava... sozinho e, nesse exato momento, já se arrrependendo de uma certa besteira cometida.
A besteira aqui sendo dissecada: o local do duelo ser o cemitério da cidade, haver ele concordado com isso. Dando assim a vantagem de campo (santo) para a Morte.
Todavia, um pouco antes de terçar as armas, o magnânimo (os adjetivos estão aumentando!) Dr. Asdrúbal teve uma idéia magistral: envolver a Morte com uma proposta irrecusável do tipo "posso resolver este seu problema de magreza constitucional". Apostando, vê-se muito bem, na esqualidez da Morte como sendo a causa única do seu comportamento antissocial. Apesar de uma proposta dessas, ao encontrar receptividade do lado adversário, por si já caracterizar o espetáculo como uma marmelada. Mas, ora, que é que tem isso? Dr. Asdrúbal sempre foi um firme adepto das teorias de Lombroso, e quem defende estas teorias quer sempre, custe o que custar, realizar a contraprova. A qual, no caso vertente, consistiria em submeter a magra personagem a uma terapia de ganho ponderal e, em seguida, avaliar-lhe as modificações da índole para melhor. No pressuposto de que a Morte concordasse com a experiência, claro.
Então, com a palavra a mortífera senhora.
Para a surpresa geral (mas não deste narrador), a Morte topou.
Hoje, restabelecendo-se dessa "Batalha de Itararé" (da vitória do tirocínio sobre o morticínio), ela pode ser encontrada em algum lugar deste planeta. Inteiramente voltada aos prazeres da vida, como se busacasse recuperar o tempo perdido. E, se o dia é de sol, talvez esteja em algum recanto parasidíaco, em alguma praia é provável, a atrair olhares cúpidos para o seu corpo de rijas carnes - o resultado de um tratamento bem conduzido. Num estilo de vida que nada tem a ver com o passado, e daí, nesta inusitada circunstância, surgir uma grande dúvida.
Alguém questionar como é possível se as pessoas, no mundo todo, ainda continuam a morrer?
Continuam a morrer, sim. Só que agora é por uma questão de inércia, garante Asdrúbal.

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