domingo, 6 de abril de 2008

PÃO, CIRCO & COMPANHIA

São cinco anos de circo, beirando os seis. Eu entro logo depois que as irmãs Desilu e Dida concluem o número dos pratos. Mas... antes eu espero que toquem o meu prefixo musical... aí, enquanto o apresentador me anuncia, eu me posiciono no interior do canhão. Em seguida, me concentro e enrijeço os músculos do corpo todo, tentando ser um bloco compacto. Disparam e... lá vou eu!... Cumprindo uma trajetória curva que me leva até a rede de proteção. Depois, é fazer umas tantas mesuras em agradecimento ao público que está aplaudindo. O público, por sinal, gosta muito do que faço e eu procuro melhorar a cada função.
Já deu para entender que eu sou o homem-bala de um circo. Inicialmente, trabalhei algum tempo no Grande Circo Mirífico, fazendo parte da trupe de equilibristas. Eu fazia com a turma uma pirâmide humana de difícil estabilidade. A prova é que um dia ela desabou feio, me causando uma fratura. Baixei ao hospital e quando me recuperei o circo tinha-se mandado do lugar. Não me comunicando a partida, eu concluí que não mais me queriam. Talvez por julgarem que eu ia ficar com algum tipo de limitação.
Ora, eu fiquei de fato foi na pindaíba, me equilibrando por outros meios para sobreviver. Até que, um dia, me surgiu na frente o Gran Circo Portunhol, que estava precisando de um homem-bala. Aceitei na bucha o emprego oferecido. Estava a fim de me livrar da pecha de pé-frio (e alguém pode imaginar emprego mais adequado para isso?)... Também estava a fim de subir na vida, o salário era razoável... E eu logo aprendi a conviver com o canhão, metal e carne na maior harmonia, se completando... E, com pouco tempo de treinamento, já fazia parte do espetáculo.
Essa loucura que é o circo. O sujeito está aqui, no mês seguinte numa outra cidade... A menos que seja com alguém do próprio circo, não dá para levar vida sentimental. Eu acabei me envolvendo, me apaixonando mesmo por Lili, a contorcionista. Dotada de um corpo exato, no esplendor dos seus dezoitos anos, ela também correspondeu ao meu amor. Seis meses após, estávamos juntos como marido e mulher. O dono do circo, pela importância que tínhamos no picadeiro, nos arrumou um trailer privativo, o nosso ninho de amor. E, nos braços de Lili, eu era incansável. Nem o leão Nero a mim se igualava (mesmo estando ele no período do cio). Ah, não queira o amigo saber do que uma contorcionista é capaz na alcova!...
Outra coisa, sou ciumento. E, aumentando o natural receio, tempos depois comecei a perceber algo diferente no ar. Algo que não era cheiro de pólvora (pois ao mesmo, aliás, por força do ofício já me habituara). Lili, minha doce Lili, não era mais a que eu conhecera. Pouco interessada em fazer amor comigo, não era mais a outrora fogosa mulher. E, porque não usava da franqueza comigo, tome eu grilado sobre o futuro do nosso relacionamento. Ficava pensando, pensando... se uma sinistra pessoa não estava me fazendo entrar pelo cano.
Um dia, porém, a suspeita de traição ganhou maior consistência. E foi Abhez, o mágico, quem levantou a lebre. "Fica de olho no Oto com a Lili", ele me disse. É... o Oto, que era do trapézio, já tivera inclusive precedente com a mulher de um companheiro. Ensaiara com ela uma fuga, só não indo muito longe os dois, pelas limitações que o trapézio oferece para tentativas de tal natureza. Então, botei olho vivo no Oto. O trapezista preenchia todos os requisitos para um homem que o mulherio chama de pão.
Em princípio nada notei que comprometesse. Mesmo porque eu ficava com Lili o tempo todo, menos nos momentos do meu show. Mas, diabos, o encontro dos dois podia ser nesses exatos momentos. Pois, de estar a postos a descer da rede de segurança, incluindo-se ainda a minha corrida até o trailer, transcorriam quinze minutos. Ou até mais tempo, quando o estrondo do canhão me deixava atordoado. E quinze minutos era tempo suficiente para Oto consumar o ato e ainda se livrar do "flagra". Principalmente se Lili dispensasse as preliminares. Bem, falando mais alto o orgasmo, Lili certamente vinha dispensando as preliminares.
(Entre nós: que espécie de show eu estaria a fazer se, em vez de me concentrar nele, ficasse a vigiar os dois pombinhos? Num domingo - que tem muitas funções - ia acabar sabe como? Quebrando a cara.... no sentido físico desta expressão.)
Depois de um estudo de situação resolvi então o seguinte. Verticalizar ainda mais o canhão - aí, com este previamente "envenenado" para dar um impulso extra - a fim de que, após atravessar uma abertura quadrangular existente na lona, eu fosse cair na proximidade do trailer. Com isso, ganhando decisivos minutos. E os cálculos feitos numa prancheta (um capitão de artilharia embaixo assinaria) não antecipavam outra coisa. Que a operação era executável, faltando apenas resolver o problema da aterrissagem.
Quando um monte de feno foi colocado no local previsto para a queda, então não faltava mais nada. O feno, esclareço aqui, era para a alimentação do leão Nero que tinha virado vegetariano. Desde que uma carne da pá, consumida em demasia, lhe causara uma bruta indigestão. A carne da pá, que não era boa nem má... porém, aí entro numa outra história, esqueça. Como também esqueça eu antes, no capítulo do desempenho sexual, haver me comparado ao sibarítico leão.
No dia propício, lá estava eu na trajetória que ia dar no monte de feno. Sob o olhar estupefacto do dono do circo, do respeitável público, de todos, enfim. E, mal pouso no feno, de lá corro ao trailer certíssimo de flagrar a dupla. Antes de ser projetado no espaço, eu não tinha visto o Oto no interior do circo. Nem a Lili. Então, era só abrir de supetão a porta do trailer e... Com razão, vejo na cama um movimentar de corpos, ouço um indecente resfolegar... Aproximo-me. Mas... quando puxo os lençóis para que se inculpassem aos meus olhos, jacaré estava lá? Não, Oto não estava.
Aquele toco de gente, o anão Epaminondas, era ele quem estava agarrado à Lili, minha doce Lili. Molhando o biscoito, como se diz neste tempo pós-Faustão. E a surpresa foi tamanha que eu, preparado para matar Giovanni Casanova, fiquei completamente aturdido. a ponto de deixar fugir, cabriolando entre as minhas pernas, com a cueca vestida ao contrário, o anão Epaminondas. Entretanto, ao alcance do meu braço vingativo, ainda se encontrava Lili. Lili, a arrependida, que chorava me pedindo para não lhe tirar a vida. Aí, me lembrando de todos os bons momentos que antes tivéramos, embainhei a arma. E abracei, beijei e perdoei Lili.
Levou algum tempo, sim, mas depois perdoei Epaminondas. E, por conta da amizade reatada, ele é muitas vezes um íntimo convidado nosso. Bem... a situação me obriga a transar grupalmente com uma contorcionista e um anão, mas foi a maneira que encontrei de sair menos chamuscado do episódio.

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