segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O VENDEDOR DE ESTRELAS

Era mais um dia de tédio em Letícia, Colômbia. No restaurante do Hotel Anaconda, com o olhar pousado sobre o Rio Solimões, eu sorvia vagarosamente a quarta tulipa de suco de carambola. Contemplava o rio, seu eterno fluir na calha que a natureza lhe reservara, seu manto majestoso cor amarelo-tartaruga... De quando em vez, um boto na vadiação rompia o espelho das águas para quebrar a monotonia. Ou, então, levada de roldão pelo rio passava alguma terra caída - ilhota móvel de vegetação. Em Letícia imperava o tédio.
No cais fluvial, uns nativos tentavam meter uma robusta anta numa embarcação, a qual mais parecia uma Arca de Noé numa versão miniatural. (Mas não havia outros animais a embarcar, nem Noé.) Já bastante ferida pelos puxões imprimidos através das cordas, a anta ainda oferecia uma grande resistência. Homens e animais numa cena antológica. Depois de hora e meia de esforços inúteis, os homens deram um tempo. E entraram numa tasca onde rolavam estridentes cumbias e o estoque da "Costeña" era bom, generoso. No cais, ficou só a pobre anta inventariando os ferimentos.
Nisso, alguém me interrompeu nas divagações:
- Sr. Silva, Paulo G C ?
Bem, respondi que sim. Ao mesmo tempo em que deduzi o seguinte: ele catara o meu nome num catálogo telefônico. Em seguida, na qualidade de brasileiro cordial ainda não desnaturado pelo meio colombiano, eu lhe ofereci uma cadeira (para que sentasse, obviamente). Mas, ao fazê-lo, notei que ele sobraçava um imenso livro de capa sépia, de onde se desprendiam traças agonizantes. Percebendo também a sua intenção de abri-lo, pedi a um garçom que esvaziasse a mesa. Mas isso depois de conferir que o recém-chegado não desejava me acompanhar numa rodada de suco de carambola.
Ele então me deu, cuidadosamente dobrado num dos cantos, o seu cartão de visita. No qual se lia:

JAMIL BEN JAMIL
Vendedor de Estrelas

Mal refeito da surpresa que tão inusitada apresentação me causara, comecei a apreciar o homem que se dizia chamar Jamil Ben Jamil. De estatura mediana, ele tinha presumíveis qüarenta anos, tez morena, cabelos castanhos e mechados, lábios pouco carnudos e um queixo proeminente. Os olhos, bastante encovados, lembravam os de uma pessoa da qual se diz que chora mais cedo. Quanto ao nariz, sugeria ser ele (e por extensão o dono) natural da Ásia Menor. E furto-me a descrever o seu traje, uma vez que ele se vestia de um modo absolutamente comum para a região amazônica, o cachecol inclusive.
Ele era extremamente loquaz. E presto ao folhear o livro de capa sépia, imenso livro só de mapas estelares, tabelas de luminosidade, espectros, gráficos de distâncias, paralaxes - enfim, um catálogo estelar. Ao ritmo de seus dedos ágeis, meninos, eu vi aparecer e desaparecer no catálogo estrelas de todas as magnitudes. Enquanto ele ia dizendo, num fôlego único:
- Temos aqui a Alfa Centauro, uma estrela tripla a 4,3 anos-luz da Terra, mas se o senhor prefere uma estrela dupla disponho de Antares, que é uma supergigante, e se está querendo algo melhor vendo Sirius, a estrela mais brilhante do céu, a apenas 8,5 anos-luz daqui, ou mesmo Regulus, que se estivesse situada a igual distância seria um astro seis vezes mais brilhante...
Sem dúvida, Ben Jamil era um brilhante vendedor. E, para que ele não se esbaldasse em vão, prometi a mim mesmo que compraria dele algum barato celeste. Nem que fosse uma estrela cadente. Antes, porém, tinha curiosidades a matar. E lhe pedi que falasse um pouco sobre a sua profissão de vendedor de estrelas. Ben Jamil não se fez de rogado:
- Estou nesse negócio há mais de dois mil anos. Mas não me refiro a anos-luz, pois estes não medem tempo e sim distância. Pois, como eu ia dizendo, há mais de dois mil anos que montei esse negócio. Foi no tempo de Hiparco, o que organizou o Almagesto. No início, eu só vendia os corpos celestes das longínquas galáxias, as estrelas embuçadas para o olho humano quando nu. Até que, na centúria passada, cheguei às estrelas visíveis, de maior aceitação pelo público comprador. E se a estrela pertence a uma constelação zodiacal, então nem fala. A Beta da Constelação de Escorpião, por exemplo, comprou-me o Salvador Dali por uma quantia astronômica, uma dinheirama que só vendo...
Faltava apenas saber qual era a minha garantia numa transação estelar. Ben Jamil esclareceu:
- Recebe o certificado legal. Mais: uma estrela, assim que é vendida, ela se apaga no firmamento. E fica apenas o buraco negro, fácil de ser conferido num observatório. Eis como provo ao comprador a lisura de meu negócio. Então, Sr. Silva, Paulo G C , pode escolher e comprar sua estrela sem susto nem sobrosso.

*****

O vulgo, cada vez que olha para o céu e nele constata estrela de menos, que faz ele? Bota a culpa na poluição, "a feia fumaça que sobe apagando as estrelas". Até Caetano Veloso caiu na esparrela. Mas eu, não, pois sei quem responsabilizar pelo fato. Ben Jamil, o vendedor de estrelas, que prossegue fazendo seus bons negócios. Eu mesmo lhe comprei a estrela Epsilon do Cruzeiro do Sul que estava com o preço remarcado (para menos). A Epsilon, também chamada de Intrometida, é aquela quinta estrela mal posicionada (abaixo do braço da cruz), que compromete a Constelação do Cruzeiro do Sul. Pois é, tirando a Intrometida do céu austral, eu penso que dei a minha contribuição - estética - para o melhoramento de um dos símbolos da pátria.

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